quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Tabacaria


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Pedro Juan Gutiérrez - Trilogia Suja de Havana

“Desde então me incomodam muito essas duas palavras: correto e sensato. São falsas e pedantes. Servem para ocultar e mentir. Tudo é incorreto e insensato. Toda a história, toda a vida, todas as épocas foram incorretas e insensatas. Nós mesmos. Cada um de nós, por natureza, é incorreto e insensato, só que nos reprimimos para voltar para o cercado como boas ovelhas, e aplicamos rédeas e mordaças em nós mesmos.”

“Mas a carne é fraca. Pelo menos a minha é fraca e pecadora. E acho que com todo mundo acontece a mesma coisa com suas carnes, mas as pessoas não querem se dar conta e até inventaram os conceitos dedecência e indecência. Só que ninguém sabe definir onde estão as fronteiras que separam decentes de indecentes.”

“Não aguentei mais e comecei a chorar como criança. Uma mulher se aproximou, tocou meu ombro e disse: “Tem de ser forte, meu filho, você tem fé?”. Eu me virei e olhei com fúria para ela. Acho que tinha um rosário e uma Bíblia na mão.
_Que forte, porra nenhuma minha senhora! Vá à puta a pariu e me deixe em paz!”

“Definitivamente, só isso é que importa. Desejar alguma coisa. Quando você deseja alguma coisa com força, já está se encaminhando.”

“Bom, quando comecei a abandonar as “coisas importantes”, as “coisas importantes” dos outros, e a pensar e a agir um pouco mais pra mim mesmo, entrei em uma fase dura. E assim fiquei muitos anos: à margem de tudo. Me equilibrando. Sempre no precipício. Me metia em outra etapa dessa aventura que é a vida. Aos quarenta anos o sujeito ainda está em tempo de abandonar a rotina, o peso estéril e aborrecido, e começar a viver de algum outro jeito. Só que quase ninguém se atreve. É mais seguro continuar igual até o fim. Eu estava me endurecendo. Eu tinha três opções: ou me endurecia, ou ficava louco, ou me suicidava. De forma que foi fácil decidir: tinha de endurecer.”


Era noite, os calos dos meus olhos doíam de tanto ver desgraça, pedi aos céus uma boa música e instrumentos melhores para se fazer poesia, as estrelas me diziam: vá em frente, a vida, essa baboseira de tanta coisa não para, e você, só você, sabe a importância das baboseiras na tua existência. Deslize emocional, minha mente viaja para lugares onde gostaria de estar, brindando momentos inarráveis com amigos sensacionais que tive a oportunidade de conhecer por aí. A vida bate e sabemos onde nosso calo dói, sabemos onde caleja nossos problemas e onde toca a nossa mais linda canção. Então, que sejamos corajosos o suficiente para andar com sabedoria na mediocridade dos outros, sem perder a elegância e conhecimento que a curiosidade nos dá, como vive os tão felizes que nunca aproveitam a tristeza é como nunca quero viver, reflito e peço ao que é desconhecido na imensidão das coisas, que nos ofereça o melhor vento na cara. Do resto, correremos atrás.

Petherson Cardoso

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

“Bom, promiscuidades à parte, tive de continuar. Me endurecendo, claro. As pessoas achavam que eu estava madurecendo. Mas não. Só tentava ficar mais e mais duro e não permitir que me manipulassem. Cada um que se fodesse sozinho. Eu tinha que dosar muito bem o pouquinho de amor que restava dentro de mim para evitar que o tanque ficasse a zero e o motor parasse. Não perdia as esperanças de recarregar em algum lugar. Utópico de merda. Fodido, mas sonhando encontrar algo bonito dentro de mim que de novo enchesse o tanque até a boca para repetir tudo e para ser outra vez aquele sujeito generoso e bom amante. Será que você é um imbecil?, eu me perguntava às vezes. Em outras ocasiões, mais relaxado, me dizia: É, é possível.”
Pedro Juan Gutierrez, no livro Trilogia suja de Havana

terça-feira, 28 de outubro de 2014

" (...) no entanto, o mais corajoso dentre nós tem medo de si mesmo. A mutilação selvagem de nossos desejos tem a sua trágica consequência na própria renuncia que perverte as nossas vidas, somos castigados pelas nossas renuncias, todo impulso que procuramos extinguir germina em nossas mente e nos envenena. Pecando o corpo se libera do pecado, porque a ação é uma forma de purificação, e nada resta então a não ser a lembrança de um prazer ou a volúpia de um remorso.
O único meio de nos livramos de uma tentação é ceder a ela. se lhe resistirmos nossas almas ficarão doente, desejando as coisas que se proíbem a si mesmas, a alem disso, sentirão desejo por aquilo que algumas leis perversas, tornaram perversas.
Os grandes acontecimentos acontecem no cérebro, e somente nele também acontecem os grandes pecados do mundo.”

Oscar Wilde. In: O Retrato de Dorian Gray (retirado do perfil do Marcelo Rocha)
O mundo virou um lugar tão pervertido, que oferecer um abraço pode ser um ato perigoso. Quanto mais cedo enfiarmos nossas crianças numa instituição, e quanto mais tarde a tirarmos de lá, melhor será, para que não incorramos no risco de um mau adestramento. Não importa o que aconteça dentro das paredes desses coraçõezinhos, importa que saiam iguais a nós, completos imbecis, tão vazios quanto a nossa última garrafa de Whisky, tão vazios quanto a soma de todas nossas realizações. Ah, caro Salinger, qual outra saída haveria para um coração tão belo quanto o do nosso Seymour Glass?
Dizem que temos que ser fortes, muito fortes, mas isso é puro discurso, pois somos tão frágeis quanto uma bolha se sabão levitando nesse ar. Pensando serem eternos, as pessoas agem como verdadeiros carros desgovernados, jogando vidas, milhares de vidas, cheias de sentimentos, repletas de sonhos, à beira da estrada, num profundo precipício, escuro precipício. Pode ser que em sua ironia Kafka estivesse certo: “Nosso mundo é apenas um mau humor de Deus, um dos seus maus dias.”.
Vou escancarar as janelas do meu quarto, esperando que o Sol a alcance, vai que é verdade e ainda temos chances...

Marcelo Rocha